Prefácio
Toda vez que me deparo com algum álbum de Heavy Metal realmente bom e vejo que este trabalho tem origem no Brasil, invariavelmente me questiono sobre algumas coisas. Nosso país, majoritariamente, não gosta de Heavy Metal – sim, estou me referindo a população como um todo, basta ver os artistas que fazem sucesso e ganham rios de dinheiro por aqui. Estamos muito distantes de uma Suécia ou Finlândia, por exemplo, onde se leva a sério o gênero até mesmo com iniciativas vindas do próprio governo.
Sendo assim, por aqui não existe um estímulo ou investimento alto, seja ele público ou privado. Os artistas e bandas ligados ao Heavy Metal tocam suas carreiras sem uma estrutura adequada, tudo é feito na raça, muitas vezes sem os conhecimentos técnicos, sem um uma gestão eficiente, assim como sem as condições necessárias. Também é necessário dizer que sem um público engajado que seja realmente interessado e, sobretudo, queira consumir. E aqui não vou fazer nenhum discurso demagogo, mas é uma constatação a predileção dos brasileiros pelo que vem de fora.
E inicio a análise do novo álbum do Cova Rasa desta forma justamente para dizer que mesmo com este cenário desfavorável, existem bandas no Brasil que se dedicam, criam material diferenciado, investem tempo e dinheiro e, caso tivéssemos um ecossistema minimamente funcional e honesto, tais discos seriam inegavelmente destaque em praticamente todos os portais, canais, blogs, páginas, web rádios e afins. Como as coisas em nosso país só funcionam na base do pagamento de pedágio, este é um disco que você infelizmente só irá descobrir por um acaso do destino, caso as estrelas estejam alinhadas, os ventos estejam soprando a favor e o algoritmo resolver te colocar em contato com uma resenha despretensiosa como esta. Se isto acontecer, sinta-se um privilegiado!

Mudanças necessárias
“Another Time” é o mais novo álbum de inéditas dos paulistanos do Cova Rasa. Depois de apresentar o interessantíssimo “Cruzando Infernos” (2020), a banda passou por algumas mudanças significativas até enfim chegar ao patamar atual. Desse modo, as duas maiores diferenças entre um álbum e outro foram as seguintes:
1 – Mudança de idioma. “Cruzando Infernos” foi um registro cantado todo em português, já “Another Time” apresenta composições em inglês. Talvez, por conta de alguns dos motivos que apresentamos no início desta resenha, talvez por outros motivos, os músicos podem ter entendido que cantar em português seja o equivalente a ficar na dependência de um público que, no geral, não apoia a cena autoral regional.
2 – Mudança de vocalista. “Cruzando Infernos” traz o guitarrista e fundador da banda, Jayme Danko, também na função de vocalista. O novo álbum “Another Time” apresenta Ivan Martins, um vocalista de ofício que chegou elevando e muito a sonoridade do Cova Rasa.

Acertando onde muitos erram
Gravado no estúdio Dual Noise por Rogerio Wecko e produzido pelo guitarrista Jayme Danko, este é um dos principais fatores que fazem o álbum soar tão bem. A produção que, em muitos casos, acaba sendo a grande vilã de discos brasileiros de Heavy Metal, aqui se mostra cristalina, com timbres assertivos, sem exageros ou pompas, mas com cada instrumento sendo ouvido de forma clara.
Instrumentalmente, todos os integrantes possuem momentos de brilho individual, mas também conseguem fazer a musicalidade do Cova Rasa se sobressair de maneira coletiva. A impressão que temos ao ouvir o álbum é que estamos diante de uma banda entrosada, afiada e pronta para alçar novos voos, inclusive, pronta para uma carreira internacional (por que não?).
Inicio promissor
A audição de “Another Time” abre com a introdução “The Red Mansion” e emenda na ótima “Borley Rectory”, uma das melhores músicas lançadas em 2025. Rápida, com ótimos riffs, linhas vocais matadoras, solos magníficos e um refrão de fácil assimilação, temos o quinteto descobrindo sua fórmula mágica logo na abertura da audição. Assim como no álbum anterior, o grupo segue investindo em letras que são na verdade pequenos contos de terror. O guitarrista Jayme Danko explica o conceito sobre “Borley Rectory”:
“A música é baseada numa história real. Borley Rectory traz à tona a intrigante história da famosa reitoria localizada em Borley, Essex, construída em 1862 e demolida em 1944. Relatos de atividades paranormais e assombrações na casa inspiraram livros, programas de TV, filmes e documentários. Depois de várias pessoas que lá moraram relatarem eventos paranormais, ela foi destruída em um incêndio misterioso”
“King Of Ghouls”, o primeiro single de “Another Time”, foi lançado ainda em 2024 e trata-se de mais uma composição grudenta. O Heavy Metal tradicional da banda funciona muito e, mesmo quando traz algo um pouco fora da curva, como um solo de teclado, cortesia de Collins Freitas, ou elementos de Power Metal, não soa deslocado e tampouco forçado. “Black Shadow” mantém a audição em alta e com pouco mais de 7 minutos de duração, nos apresenta outro refrão pegajoso, uma sequência de solos ao estilo duelo entre Jayme e Collins, bem como uma performance bastante convincente do baterista Douglas Oliveira.
Temática sombria
“Dr. Death” é dona de um belíssimo riff de guitarra na abertura e faz referência a bandas como Iron Maiden e Judas Priest, mas a adição dos teclados mesmo que somente como plano de fundo concedem uma identidade própria latente. Pode parecer repetitivo, mas novamente o refrão soa extremamente grudento no bom sentido e fica evidente que esta é uma das especialidades da casa.
A letra da canção é, sem dúvida, uma das mais sinistras do tracklist. Inspirada no caso verídico de Marcel Petiot, um médico francês que também se mostrou um dos serial killers mais bárbaros da história. Ele atuou na época da Segunda Guerra Mundial e, dessa forma, a música revela como ele atraía sua vítimas (na maioria, judeus fugindo dos nazistas), prometendo segurança e tratamento médico. Em vez disso, Petiot drogava, assassinava e depois roubava os pertences dos desafortunados que cruzavam seu caminho. Em 1944, mais de 20 corpos foram descobertos em sua casa em Paris. Sendo assim, Petiot foi preso, julgado por 27 assassinatos, condenado e executado na guilhotina em 1946.
“Reaper’s Rival” é um Heavy mais direto, com o baixo de Caio Caruso pulsando de forma vívida e linhas de guitarra “maidenianas” de Jayme. “Heartbreaker’s Hunter” traz a participação especial do guitarrista António Araújo (ex-Korzus e Matanza Ritual). Apesar do Heavy britânico parecer mesmo ser um dos maiores fatores inspiradores do grupo, aqui inegavelmente podemos encontrar elementos da escola alemã e nomes como Victory e Bonfire (do início de carreira) podem ser associados.

Composições fortes
Para os fãs que ouviram o disco anterior, “Cruzando Infernos”, irão perceber que “Countess Of Blood” é nada menos que uma versão adaptada de “Condessa de Sangue”. Pelo nome, fica fácil entender do que se trata esta letra. E sim, se você pensou em Elizabeth Bathory, é exatamente esta a inspiração nesta canção.
“Devil’s Road” volta ao Heavy mais direto e veloz, com linhas vocais muito boas de Ivan Martins assim como um dos melhores refrãos do álbum. A temática é outra daquelas carregadas de mistério e apresenta outro caso verídico, em síntese, um dos maiores crimes sem solução da história recente.
Em 2011, a França foi abalada por um acontecimento chocante: cinco membros da família Dupont de Ligonnès foram encontrados mortos e enterrados sob o pátio de sua mansão, em Nantes. As vítimas foram executadas enquanto dormiam e o principal suspeito, o pai, Xavier Dupont de Ligonnès, desapareceu sem deixar rastros. Sendo assim, este é um dos maiores mistérios não solucionados do país. A casa ficou marcada pela tragédia e, mesmo depois de ser vendida em 2015, permanece cercada de curiosidade, teorias e carrega o peso de um crime que jamais encontrou respostas.
Colhendo os frutos pela resiliência
O álbum encerra com “The Flying Dutchman”, um épico com mais de 11 minutos de duração e a participação especial do guitarrista Gui Calegari (ex-Venomous e Throw Me To The Wolves). Com diversas partes instrumentais, mudanças de andamento assim como uma coleção de ótimos riffs, somos convidados a desvendar os mistérios e lendas ao entorno do Holandês Voador, o navio fantasma mais famoso de todos os tempos. Todos os instrumentistas se destacam aqui. O teclado aparece com climatizações excelentes e a parte rítmica rouba a cena, mas as guitarras afiadas elevam a música a outro patamar. Ivan mais uma vez dá um show de interpretação e o álbum finaliza de maneira irretocável.

Me lembro que na época que “Cruzando Infernos” foi lançado, o Cova Rasa foi tratado como uma revelação. As ideias contidas no trabalho eram muito boas e originais, o disco recebeu elogios e tive a sensação que era apenas uma questão de tempo. Certamente, o grupo se desenvolveria por completo e se transformaria em um grande nome no país.
Como vivemos em um país onde todos os problemas destacados no início desta análise são reais e imediatos, confesso que tive um pouco de receio sobre se a banda iria conseguir sobreviver até o ponto em que pudesse mostrar todo seu real poderio de fogo. Felizmente, o Cova Rasa demonstrou possuir a resiliência necessária para seguir adiante e dar o próximo passo. Á partir disso, só posso torcer para que se mantenham firmes e sigam nos presenteando com discos dotados da mesma qualidade de “Another Time”.
Ótimo trabalho!
Nota: 9
Integrantes:
Caio Caruso (baixo) Douglas Oliveira (bateria) Collins Freitas (teclado) Ivan Martins (vocal) Jayme Danko (guitarra e backing vocals)Faixas:
The Red Mansion Borley Rectory King Of Ghouls Black Shadow Dr. Death Reaper’s Rival Heartbreakers’ Hunter Countess Of Blood Devil’s Road The Flying DutchmanO post Resenha: Cova Rasa – “Another Time” (2025) apareceu primeiro em Mundo Metal.